A genética em transformação: crise e revisão do conceito de gene.
Joaquim L. M. ; El-Hani C. N. A genética em transformação: crise e revisão do conceito de gene. Sci. stud. vol.8 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2010.
"A definição de gene encontrada no glossário associado ao pgh pode ser considerada conservadora, na medida em que constitui um claro exemplo de uso do conceito molecular clássico.2 De acordo com a definição, o gene é uma unidade hereditária que possui estrutura, função e localização definidas. Essa concepção sobrepõe o conceito mendeliano de unidade hereditária ao conceito molecular clássico (cf. Fogle, 1990), atualizando em termos moleculares, desse modo, uma visão sobre a existência de uma unidade básica da herança particulada que é anterior ao próprio conceito de gene, sendo encontrada, por exemplo, no uso que Mendel fez de termos como "fator".”(p.6)
“Os desafios mais importantes ao conceito molecular clássico surgiram a partir de pesquisas em organismos eucariotos. Mesmo com todo o sucesso que a pesquisa em procariontes teve em desvendar os mecanismos de controle e regulação da célula, a partir da década de 1970 uma série de estudos mostrou que os genes em organismos eucariotos são distintos em aspectos fundamentais daqueles encontrados nas bactérias. Diferentemente do DNA das bactérias, o DNA dos eucariotos está armazenado no núcleo, onde ocorre a transcrição, enquanto a tradução do RNA originado a partir do DNA tem lugar no citoplasma, mais precisamente nos ribossomos. Essa diferença entre procariontes e eucariotos pode parecer simples a um olhar menos atento. Entretanto, ela promove um significativo aumento em número e complexidade das etapas dos processos envolvidos na ação gênica. O RNA entra em cena como um elemento atuante em diversas dessas etapas, permitindo a ocorrência de uma imensa gama de processos de controle celular que incidem sobre rnas.”(p.15)
“Sequências de DNA podem ser transcritas em mais do que um transcrito de RNA primário e, consequentemente, em diferentes mRNAs chamados de isoformas de transcritos, as quais podem ser produzidas de várias maneiras, por exemplo, mediante o uso de diferentes locais de início de transcrição (transcription start sites, tss), ou usando regiões promotoras de loci gênicos completamente diferentes. Há também o fenômeno de trans-splicing, no qual ocorre a ligação de duas moléculas de RNA separadas em um único transcrito maduro, as quais podem ter sido originadas de fitas de DNA opostas, ou até mesmo de cromossomos diferentes. Adicionalmente, são também conhecidos cerca de 200 tipos diferentes de modificações pós-traducionais. Todos esses achados colocam dificuldades adicionais para a ideia de uma relação 1:1:1 entre gene, produto gênico e função. Nas seções seguintes, examinaremos resultados empíricos mais recentes que trazem ainda mais desafios ao gene molecular clássico.”(p.36)
“A complexidade da expressão gênica está especialmente relacionada ao grande número de processos vinculados à regulação. Entre as dificuldades que os processos regulatórios acarretam para as noções simples de função gênica está, como já mencionamos, a própria distinção entre genes estruturais e regulatórios.”(p.38)
“Os microRNAs e siRNAs não se distinguem pela sua composição química ou pelos seus mecanismos de ação, mas podem se distinguir quanto à sua origem ou quanto aos genes que silenciam, isto é, cuja expressão inibem. Os microRNAs derivam do DNA, enquanto os siRNAs podem derivar do DNA ou de transposons e vírus.”(p.40)
“O número de micrornas identificados continua crescendo. Pesquisadores estão explorando o funcionamento dos microRNAs e caracterizando a especificidade dos tecidos em que são encontrados, assim como as atividades de moléculas individuais de microRNAs. Mudanças nos níveis de micrornas têm sido correlacionadas com muitas doenças. Muitos trabalhos estão em andamento sobre os efeitos de expressões (baixas ou altas) de microRNAs específicos ao longo do desenvolvimento e na inibição de doenças, principalmente câncer, doenças do coração, desordens neurológicas, diabetes, entre outras (cf. Glaser, 2009).”(p.43)
“Outra implicação é que, em eucarioto, um gene pode não estar em um locus gênico discreto, ou seja, suas sequências codificantes podem estar espalhadas pelo genoma. Afinal, a definição não restringe os loci dos éxons que se combinam para codificar o produto final. Portanto, eles podem estar em diferentes fitas de um cromossomo ou mesmo em cromossomos separados e, ainda assim, pertencer ao mesmo gene. Para essa definição, o gene é um conjunto de sequências compartilhadas pelos produtos, não sendo necessário que essas sequências estejam conectadas, assim como sequências vizinhas podem, por sua vez, não fazer parte do mesmo gene.”(p.72)
“O termo "gene" é hoje usado na pesquisa genética não mais para referir-se a uma única entidade, mas como uma palavra de grande plasticidade, definida pelo contexto experimental em que é usada. Os genes tornaram-se objetos epistêmicos, como argumenta Rheinberger (2000). Uma série de descobertas sobre os genes e os processos de expressão gênica dificulta a interpretação do gene como unidade de estrutura e/ou função. Frente à complexidade do genoma e da maquinaria celular, a proposta de uma relação de 1:1:1 entre um gene, um produto proteico e uma função mostra-se insustentável.”(p.86)
Fonte:http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1678-31662010000100005&lang=pt
Nenhum comentário:
Postar um comentário